Fotógrafo e
radialista cegos rompem as barreiras do improvável e provam que a inclusão de
deficientes no mercado de trabalho da comunicação é possível
Fernando Carvalho
Horácio Busolin Júnior
Citando
José Saramago, “É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que
não quis ver”. Essa cegueira branca na qual Saramago usa como alegoria no livro
“Ensaio sobre a cegueira”, pode ser aplicada no dia a dia quando as pessoas
passam a não reconhecer a capacidade de pessoas com deficiência de ingressar no
mercado de trabalho.
No
Brasil, segundo dados do Censo Demográfico de 2010 divulgados pelo IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 45.606.048 milhões de
pessoas declararam ter pelo menos uma das deficiências, o que corresponde a
23,9% da população brasileira.
Outro dado que chama a atenção e
preocupa é de que desse total, 53,8% (23,7 milhões) das pessoas declaram estar
desocupadas ou não são economicamente ativas. Em contrapartida, números do IBGE
também apontam crescimento no número de pessoas com deficiência ocupadas, que
chega a 23,6%, ou seja, 20,4 milhões do total de 86,4 milhões de brasileiros
ocupados.
Nessa selva de pedras de disputa por um lugar
ao sol, a luta desses profissionais em extrapolar limites também se intensifica
no jornalismo, na fotografia e no rádio. Quebrando tabus e tornando o
improvável uma realidade concreta, quem imaginaria que um fotógrafo possa ser
cego ou que um radialista também com deficiência visual possa dar resultados de
jogos sem poder ler uma linha?
As duas histórias parecem insólitas
e tão inacreditáveis quanto uma chuva de sapos. Mas não. Elas são verdadeiras e
serão cristalizadas em palavras pela Revista Painel nesta reportagem, que irá
trazer a luz a vida profissional do fotógrafo Teco Barbero, de Sorocaba e do
radialista Marcelo Eduardo Marchi, da cidade de Leme-SP.
Com
menos de 10 % da visão, o fotógrafo Teco Barbero utiliza o tato para fotografar
|
Fotografar sem a visão?
“Nem tudo é só imagem em uma foto.
O som e a sensibilidade podem fazer parte do que se vai retratar. Talvez se o
fotógrafo tocar em uma árvore antes de fazer a foto, ele tenha uma percepção
mais sensível do que está em sua volta. A foto com sensibilidade agrega bem
mais valores técnicos e estéticos” – Teco Barbero
Tirar
fotos sem utilizar a visão. Seria isso possível? Para o jornalista e fotógrafo
sorocabano Antonio Walter Barbero, 31 anos, a atividade se tornou realidade.
Com deficiência visual rara chamada persistência de vítreo primária, o
jornalista possui visão de 5% a 10% e vê tudo o que as outras pessoas veem,
porém com bem menos potência.
Andando com desenvoltura pela sua
casa, entre a sala e cozinha, não se nota a deficiência visual. Simpático,
divertido e comunicativo, Teco Barbero, como é popularmente chamado, desde
pequeno sempre driblou as dificuldades estudando e trabalhando como qualquer
pessoa normal.
Na época em que entrou na escola, a
palavra inclusão de deficientes ainda era recente. Teve a ajuda dos professores
e principalmente de uma tia que o acompanhava durante as aulas. Não possui uma
boa leitura braile e como enxergava um pouco, foi incentivado a ler e escrever
normalmente. Sua escrita e leitura não são tão ágeis, mas com persistência
consegue ler o jornal por pelo menos 2 horas.
O
jornalismo surgiu quase que por acaso. Primeiro queria fazer a faculdade de
idiomas, por ter facilidade e gostar da profissão de intérprete. Porém em
Sorocaba na época, não tinha esse curso e por indicação de professores e
amigos, decidiu cursar jornalismo na Uniso (Universidade de Sorocaba).
Fazer
a faculdade foi um desafio e no início chegou a ouvir palavras desanimadoras.
“Cheguei a sentir certa relutância de alguns alunos que me questionavam: - Como
você irá fazer quando tiver as matérias de fotojornalismo e telejornalismo? Aí
respondi: ‘Quando chegar lá eu vejo como farei, não vou desanimar’, disse o
fotógrafo.
Muito
por coincidência, o encontro com a fotografia aconteceu no segundo semestre do
curso, quando por meio de iniciativa do professor Werington Kermes, Teco foi
convidado para participar de uma oficina de fotografia para deficientes visuais.
O professor decidiu realizar uma oficina com 12 alunos cegos, após assistir ao
filme “Janela da Alma”, de 2001, que mostrava as experiências do esloveno e
fotógrafo cego, Edgen Bavcar.
“A
oficina durou seis meses e proporcionou que deficientes visuais se sentissem
incluídas na sociedade, podendo até tirar fotos da família e de eventos. Para
mim o curso teve um caráter mais sério, tanto que usei os conhecimentos que
adquiri para realizar meus trabalhos na disciplina de fotojornalismo”, contou
Teco.
Após
ter-se formado, já em 2009, recebeu o convite para realizar fotos para campanha
publicitária da Associação Desportiva para Deficientes (ADD). O feito mudou sua
vida profissional, e desde então passou a ensinar sua técnica.
“Meu
objetivo é ministrar essas oficinas nas faculdades, principalmente de
jornalismo, e capacitá-las para poder receber alunos com deficiência”, conclui.
Após
o reconhecimento do trabalho que realizou na campanha publicitária, recebeu
convite pra trabalhar como editor do jornal interno da Facens (Faculdade de
Engenharia de Sorocaba). Por ser avesso ao uso de computador, não usa qualquer
tipo de programa de acessibilidade e acabou adotando uma rotina um tanto
incomum, mas que com ajuda dos colegas funciona.
“Peço
que as pessoas me entreguem as matérias impressas e as leiam pra que possa
editá-las. Devido a boa audição e memória que possuo, acredito que o processo
vem dado resultado”, conta Teco.
Medindo um palmo o fotógrafo mede a distância entre a máquina fotográfica e a pessoa a ser retratada |
Sentindo as imagens
A
sensibilidade tátil também é um dos pilares que sustentam a rotina de trabalho
do jornalista. O enquadramento das fotos para um fotógrafo que não enxerga,
segundo as técnicas de Teco, é orientado pelo tato. Com a mão, medindo um
palmo, o fotógrafo controla a posição e a distância que o objeto ou pessoa a
serem retratados estão da máquina fotográfica.
Se
a foto que a pessoa quiser tirar for de curta distância, basta apenas
posicionar a máquina na altura dos olhos, sentir onde está o botão e clicar.
Caso a foto seja de uma distância maior, será necessário que o fotógrafo, sem
mudar sua posição, dê de dois a três passos pra trás e bata a foto.
Teco
esclarece uma questão comumente lembrada pelos alunos das oficinas. Se a foto é
tirada por um cego que não pode vê-la, qual então o sentido de fazer a oficina?
Teco responde: - Não tenho a ambição de torná-los fotógrafos profissionais. A
foto serve para que eles sintam o ambiente onde estão, seja na praia ou
paisagem e possam compartilhar com a família.
O processo imaginativo também é peça
chave na fotografia para cegos. O esloveno Edgen Bavcar diz fazer suas fotos
com o olhar da imaginação. Perdeu a visão aos 12 anos, e passou a tirar fotos
com 17 anos, depois que emprestou uma câmera fotográfica da irmã. A fotografia
para ele surgiu como forma de liberar imagens que existiam em sua cabeça e no
interior de sua alma.
“Para o deficiente visual quem
enxerga não são olhos, mas sim o cérebro, que projeta a imagem por meio do
conjunto de sensações como tato, olfato e audição captados.”, explica Teco.
Teco
também utiliza as mesmas técnicas de Bavcar, incluindo a foto orientada por
áudio descrição. Em fotos mais complexas como paisagens ou mesmo objetos de
tamanho maior como um carro ou uma casa, o fotógrafo precisa da ajuda de um
acompanhante que descreve o ambiente ou uma paisagem.
Radialista deficiente visual Marcelo Marchi recebendo orientações de sua mulher que lhe passa as informações oralmente |
Memória de elefante
Quem
ouve a narração do plantonista esportivo da rádio Educadora nem imagina que ali
está o deficiente visual Marcelo Eduardo Marchi, 34 anos. Com carreira de 12
anos no rádio, o radialista possui apenas 4% da visão, ou seja, Marcelo enxerga
apenas vultos que oscilam de zero a quatro por cento.
O radialista, que não aprendeu a ler
em braile, conta com a memória privilegiada para decorar os textos. Sua mulher
Débora Alexandre Marchi o auxilia e fica encarregada de coletar as informações
e passá-las oralmente ao marido. Paralelo a isso, Marcelo tem seu próprio
radinho de pilha, onde também ouve o resultado dos jogos.
“A memória tem que ser sempre
treinada e estimulada. Desta forma, ela nunca te deixará na mão. Não nego que
às vezes é um pouco cansativo. Mas acostumei-me a trabalhar assim, e hoje se eu
falar qualquer informação três vezes eu não esqueço mais” concluiu.
Antes
mesmo de trabalhar no rádio Marcelo Marchi desde criança adorava ficar o dia
todo gravando, ouvindo e corrigindo sua voz para o programa de esporte que
fazia sozinho em sua casa. Marcelo montava o programa em fitas cassetes no
rádio, que ganhara de sua mãe.
Seu
grande sonho começou em 1999 quando ingressou como locutor na rádio Cultura de
Leme. Sua função era como retaguarda esportiva, que era pegar resultados para
outro plantonista. Quando este mesmo plantonista mudou de emissora, Marcelo foi
convidado a assumir o lugar do locutor. No começo ficou um pouco com medo, mas
sua grande chance de realizar seu sonho de trabalhar com rádio falaram mais
alto.
Desde que perdeu o pai, em 1982 com
apenas 04 anos de idade, quis seguir seu caminho com as próprias pernas.
Abandonou a escola para poder trabalhar e começou cedo como ajudante de
caminhão. O fato de ter abandonado a escola não foi por motivo de preconceito,
mas sim por não conseguir se adaptar as aulas dos professores.
A
deficiência visual nunca foi empecilho para Marcelo, que se considera um
autodidata. “O mundo não tem que se adaptar a gente. Pelo contrário, nós é que
temos que se adaptar a ele, criando alternativas para poder fazer aquilo que
sentimos vontade. Se você ficar parado, esperando alguma coisa acontecer, você
não vai alcançar nada na sua vida”, desabafa Marchi.
Realizando o sonho de criança, desde
que construía sua própria rádio em casa com fitas cassetes, Marcelo conseguiu
alcançar seu sonho e há 06 anos trabalha na Rádio Educadora 1020 AM de Limeira
e também na Rádio Brasil 101,1 AM de Leme.
O radinho de pilha, amigo inseparável do locutor |
Enxergando com os ouvidos
A
percepção de mundo dos cegos difere completamente daqueles que enxergam, não só
pelo fato de não poderem ver, mas sim por ter outros sentidos como audição,
tato e olfato e até a memória mais apuradas. Qual será então a explicação para
o desenvolvimento dessas capacidades? Podem ser adquiridas ou já estão
transcrita no DNA?
No caso de Teco Barbero e Marcelo
Eduardo Marchi, que já possuem déficit visual intra-útero, a maior eficiência
desses sentidos é explicada pela neuroplasticidade, que é a capacidade que o
cérebro tem de remapeamento das conexões das nossas células nervosas, o
processo que nos ajuda no aprendizado.
Neste caso, os neurônios
responsáveis pela visão foram perdidos e substituídos por outros com função
redirecionada. Até a década de 70, imaginava-se que as células nervosas não
possuíam a capacidade de reproduzir-se. Porém com a descoberta da
neuroplasticidade, os neurônios mesmo que lentamente, se regeneram.
Para
o médico neurocirugião Humberto Barbosa, é que como se o cérebro se
reprogramasse para poder suprir o déficit da área que sofreu a lesão. “Essa
alteração funcional causa hipertrofia de sistemas, ou seja, quando a pessoa
perde a visão, o cérebro precisa criar sistemas de defesa e passa a produzir
mais proteínas para outros sentidos que não a visão. Neste caso, a cinestesia,
capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, será definida pelo
tato, olfato ou audição”, explica o especialista.
O mesmo raciocínio pode explicar a “memória de
elefante” do radialista, que segundo o médico, foi potencializada. “Desde
pequeno ele não aprendeu braile, até porque já possuía a memória auditiva
importante. A partir disso a atividade só foi potencializada e desenvolvida no
decorrer dos anos, até pra suprir o déficit de suas outras capacidades”, ressalta.
Luta pelos direitos dos deficientes
Lutando
pela exigência de direitos desses profissionais e o preconceito que sofrem no
cotidiano, a webjornalista Kátia Fonseca, que trabalha Rede Anhanguera de
Comunicação (RAC) em Campinas e membro do Sindicato dos Jornalistas de São
Paulo, realizou em 2010 um cadastro de jornalistas profissionais portadores de
deficiência para oferecer serviços a empresas jornalísticas, assessorias de
imprensa ou trabalhadoresfreelancers.
O
serviço, realizado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de
São Paulo (SJSP), tem por objetivo intensificar o cumprimento da Lei de Cotas,
criada em 1991, que prevê a contratação obrigatória de profissionais com
deficiência por empresas que tenham acima de 100 funcionários.
O
cadastro ainda está tímido e recebeu poucas adesões. “Com a lei a empresas tem
por obrigatoriedade a contratação. Isso facilita o ingresso desses
profissionais no mercado. Porém pouquíssimos jornalistas com deficiência nos
procuraram. Talvez esteja faltando mais divulgação”, afirma.
Para
Kátia, que é portadora de nanismo acondroplásico em consequência de má formação
óssea congênita, diz que quando começou a estudar e trabalhar encontrou muitos
desafios e obstáculos. Ela recorda que na época em que começou no jornalismo,
em 1990, as empresas não davam o apoio que dão hoje, até porque ainda não eram
obrigadas a empregar esses profissionais.
Com
a criação da Lei de Cotas, há 21 anos, o panorama está sendo alterado. Porém,
segundo ela ainda é preciso mais esforço para seu cumprimento.
“As
grandes empresas estão cumprindo a Lei de Cotas, mas não totalmente. Isso ainda
é um "nó" que precisa ser desatado. É um jogo de força entre empresários, que não querem gastar dinheiro”, afirma a jornalista.
Não dando a luta por vencida, a
jornalista persistiu no sonho de escrever, e após sair da FaculdadeCatólica São
Leopoldo, em Santos (SP), onde se formou, trabalhou como freelancer no jornal
semanal O Vale, na cidade de Registro (SP). Foi assessora de imprensa no
Sindicato dos Urbanitários de Santos e, por fim, mudou para Campinas trabalhar
no jornal Correio Popular.
No
início de sua carreira, chegou a trabalhar como repórter de rua, No entanto a
falta de acessibilidade nas cidades, nos prédios públicos, a impossibilitava de
chegar aos locais para as matérias. “Se o repórter cadeirante chega a algum
desses lugares para fazer uma cobertura e depara com uma escadaria, seu
trabalho será em vão”, alerta Kátia.
Esse
entendimento da sociedade na aplicação de políticas públicas de acessibilidade
podem ganhar potência e destaque, se o preconceito for derrotado. Assim define
a jornalista, que vê como maior antídoto para matar essa doença a informação.
“ONGs
geridas pelas próprias pessoas com deficiência são fundamentais para informar sobre
a realidade do cotidiano das pessoas com deficiência. Cabe a elas mostrar à
sociedade como vivem, do que são capazes e o quanto são iguais a todo mundo,
apesar das diferenças”, exalta a jornalista.
Dando voz a quem não tem vez
A
sociedade também já se mobiliza, criando novos canais de mídia para a difusão
de conteúdo para o público deficiente. Um dos exemplos é o projeto a Vez da
Voz, Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) criada em 2004
com objetivo de produzir telejornais, programas de rádio e conteúdos de mídia
com narração, Língua de Sinais, legenda e audiodescrição.
A
iniciativa cumpre a Portaria nº 310 de 27 de junho de 2006, que aprovou a Norma
Complementar nº 01/2006 e dispõe sobre acessibilidade para pessoas com
deficiência na programação veiculada na televisão.
Além
disso, o projeto serve de via alternativa para dar oportunidade de emprego aos
profissionais com deficiência que desejam trabalhar na comunicação. O conteúdo
dos vídeos e rádio é produzido por repórteres e apresentadores com algum tipo
de deficiência, seja ela física, visual, cognitiva ou auditiva.
O
projeto, coordenado pela fonoaudióloga, doutora em lingüística, professora de
português, escritora e presidente da ONG Vez da Voz Cláudia Cotes, tem como
destaque a produção do Telelibras, primeiro telejornal do Brasil voltado para a
comunidade surda e que é apresentado pela deficiente visual e também cantora e
compositora Sara Bentes.
Para
Cláudia Cotes, a realização do Telelibras surge como proposta inovadora para o
futuro da inclusão na TV no Brasil. Tanto na recepção quanto na possibilidade
de inclusão dos profissionais, que segundo ela, ainda não acontece como
deveria.
“O
jornalismo não absorveu a inclusão para si próprio. Falta capacitação nas
faculdades e as emissoras precisam querer cumprir a lei, criar condições de
acessibilidade na Comunicação. Falta conhecimento sobre o assunto”, alerta
Cláudia.
A
criação do Telelibras impulsionou a visita ao site da ONG
http://www.vezdavoz.com.br/site/index.php,
que subiu de 10 mil para 25 mil acessos mensais. Porém por falta de verbas pra
seguir em frente, o projeto está parado. “Os projetos da Vez da Voz foram bem
aceitos e premiados. Mas começaram a crescer de tal maneira, que precisavam de
mais recursos. As empresas também são relutantes em investir, o que fez com que
parássemos o projeto”, lamenta Cláudia.
*matéria publicada na Revista Painel - Ciência e Cultura n º74 - produzida em 2012 por alunos do curso de jornalismo da Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba).
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